[em curso de leitura,
na reimpressão de 2014, este livro de T. G., de 84;]
Recortes:
[...]
Sábado,
cinco.
Iria
pintando em cada dia o seu retrato, decidiu, deixaria retratos sucessivos no
tempo, multiplicando-se para aumentar as suas hipóteses de escapar à morte.
Porque a morte levaria muito mais tempo a apagar todos esses eus do que só um.
[…]
Segunda, treze.
Olhou-se
ao espelho, para ver como ficaria no retrato. Mas a imagem que viu não lhe
pareceu exacta. Procurou debalde em todos os espelhos, no (…) oval do quarto,
no (…) escuro da entrada, […] Mas a imagem pareceu-lhe cada vez mais inexacta.
[…]
Domingo, doze.
Procurou
nas fotografias, mas todas tinham desbotado, estavam pouco nítidas e não se
reconhecia em nenhuma, […]
Segunda, trinta e um.
Então
foi ao fotógrafo, tirar o retrato.
No
estúdio havia guarda-chuvas de seda branca, coando uma luz homogénea, clara,
subindo e descendo diante do seu rosto, ela estava sentada debaixo da luz como
um objeto em que ele tocava, compondo-o, mudando, inventando.
(o
tempo parado, o instante preso, ficarás assim pela eternidade adiante — as
fotografias eram uma imagem da morte, o seu rosto sem vida, uma máscara de
cera, fixa, fria)
não
havia exactidão e tudo era manipulável, viu enquanto ele levantava e baixava os
guarda-chuvas luminosos, a máquina deveria ser imparcial e exacta, mas de algum
modo ele fazia-a mentir, e também ela própria era um objecto, assim exposta, à
mercê da luz e da objectiva.
De
tão manipulada e de tão morta, também não se reconheceu nesse retrato. […]
Teolinda Gersão, Os
guarda-chuvas cintilantes — Cadernos I – diário, 3.ª ed., Sextante, 2014, pp. 28-30