[…] Enquanto o meu pai
dava a sua aula, eu esperava por ele sentado à secretária a desenhar ou a
escrever à máquina, fingindo que escrevia como ele, [...] Ao longe, Gilma Eusse, a secretária, olhava para mim, sorrindo com picardia.
De que sorriria ela não sei. Tinha uma fotografia emoldurada do seu casamento na
qual estava vestida de noiva a casar com o meu pai. Eu perguntava-lhe uma e
outra vez por que é que tinha casado com o meu pai, e ela explicava-me, a
sorrir, que tinha casado com um mexicano, o Iván Restrepo, por procuração, e que
o meu pai tinha sido seu representante na igreja. […]
[…] nessas manhãs da
minha infância, ela ajudava-me a pôr o papel no rolo da máquina de escrever. Eu
não escrevia, mas já escrevia, e quando o meu pai saía das aulas mostrava-lhe o
resultado.- Olha o que eu escrevi.
Eram umas quantas linhas cheias de gatafunhos: […]
- Muito bem! – dizia o meu pai com uma gargalhada de satisfação e felicitava-me com um grande beijo […]
[…] ele festejava, na
minha escrita, até os gatafunhos sem sentido, o que me ensinou muito devagar a
maneira como as letras representavam os sons, para que os meus erros iniciais não
provocassem o riso. Eu aprendi, graças à paciência dele, todo o abecedário, os
números e os sinais de pontuação na sua máquina de escrever. Talvez isso
explique o facto de que, para mim, são os teclados – muito mais do que os lápis
ou as canetas – que representam da maneira mais fidedigna a escrita. Essa maneira de ir afundando os sons, como num piano, convertendo as ideias em
letras e em palavras, parecia-me, no início – e ainda hoje me continua a parecer - uma da magias mais extraordinárias
do mundo.
Além do mais, por
causa da admirável habilidade linguística que as mulheres têm, as minhas irmãs
nunca me deixavam falar. Mal eu abria a boca para tentar dizer qualquer coisa,
já elas a tinham dito, […] com mais graça e mais inteligência. Acho que tive de
aprender a escrever para poder comunicar de vez em quando e, desde muito
pequeno, enviava cartas ao meu pai, que as festejava como se fossem epístolas
de Séneca ou obras-primas da literatura. […]
Creio que o único
motivo porque fui capaz de continuar a escrever todos estes anos […] é o facto
de saber que o meu pai teria desfrutado mais do que ninguém com a leitura destas páginas minhas que nunca
pôde ler. Que não lerá nunca. É um dos paradoxos mais tristes da minha vida:
quase tudo o que escrevi foi escrito para alguém que não me pode ler, e mesmo
este livro não é mais do que uma carta a uma sombra.
Héctor Abad Faciolince. Somos o esquecimento que seremos. (2006). Lisboa, Quetzal, 2009, pp. 22 - 25
- «Carta a uma sombra» - Documentário, de [...]: AQUI
- o livro continua na Estante do CORR; Faciolince, em 2023, na Ucrânia, sobreviveu ao Missil que atingiu o restaurante onde estava, em Kramatorsk e que vitimou escritora ucraniana; ver tb, no Ípsilon; tb. no «Público», Crónica, a 5 de Julho [Recorte: [...] Vou dedicar os próximos meses a escrever sobre este crime atroz, a contá-lo minuciosa e detalhadamente, em cima da propaganda e da mentira dos russos. É algo que devo à justiça, em abstracto, e à justiça que um dia deverá fazer-se por este crime atroz cometido contra uma grande colega muito valente, uma escritora da idade da minha filha que, por sua vez, deixa órfão um menino de dez anos. [...]
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