sábado, maio 20, 2017

Palhaça (A Bolsa da Avó) - Bap. Bastos

[um dia o lerá a M., após passeio pela Bica; Oxalá; oxalá...]

[...] Quando a minha avó me visitava fazia-se uma pausa no tempo. Sentava-se no degrau da soleira da porta e contava-me as ocorrências do bairro onde nascêramos. Eu falava-lhe da escola, do meu pai que me levava ao cinema das zonas da cidade que ia lentamente descobrindo. Olhava-a com desvelo e à beleza do seu rosto ordeiro, comparável ao busto de uma estátua. O virar dos anos fez-me pensar como é que ela mantivera o porte e a teimosia da esperança, numa casa e numa família em que se chorava demasiado.
   Ao despedir-se enfiava a mão na bolsa colocada por detrás do avental e dava-me umas moedas. «Come bolas de berlim, dão grande sustento ao corpo.» A bolsa tinha a forma de um oito, com a base mais larga e três compartimentos: para as notas, para as moedas de prata e para as de cobre. A minha avó era dona de um bom par de mãos arcaicas. Fizera renda, trabalhara numa fábrica de lã de merino e, agora, vendia peixe.
  A bolsa era um artefacto de pequenos quadrados de flanelas coloridas e sobrepostas, e exalava um discreto cheiro a peixe. A minha avó gostava de passar a mão direita, como uma carícia, na zona do avental sob a qual estava a bolsa. Dizia que o dinheiro jamais se acabaria, porque se sentia reconfortado e grato pelos afagos. A verdade é que a bolsa nunca esteve vazia para quem, na família, de auxílio precisasse.

Baptista-Bastos, A bolsa da avó palhaça - A infância revisitada...-, Oficina do Livro, 2007, pp. 24 -26 (ilustração de Monica Cid, fotografada da pág. 25

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