Recortes da Narrativa ABG de Dulce Maria Cardoso, da «Visão», de 25 de Abril:
[...]
Mudáramos há menos de um ano, eu saltava à corda perto
da igreja que se ia construindo com as contribuições dos fiéis, quando a
Editinha magricelas apareceu afogueada com a notícia, Houve uma revolução na
metrópole. Nem eu nem os meus amigos nos distraímos da brincadeira, a capital
do Império era, para nós, tão irreal quanto o céu que, mesmo baixo de nuvens
escuras, continuava lá longe. [...] Dali a menos de três meses, eu faria dez anos. Nesse meu
aniversário, enchi-me de alegria infantil com os dois dígitos que desenhariam a
minha idade para o resto da vida. [...] No dia em que a revolução fez um ano, corriam já, há
muito, boatos de que os comunistas da metrópole queriam deixar os colonos
morrer às mãos dos soldados independentistas, não interessava se homens,
mulheres ou crianças, eram todos fascistas, colonialistas e imperialistas, ia
haver maca da grossa. O martelar de caixotes tornou-se ensurdecedor, [...] Quando
fiz onze anos já não tinha casa nem infância. [...]
Ainda éramos retornados quando a revolução celebrou o
seu décimo segundo aniversário. Eu era das poucas moradoras do desalentado Lote
11 que continuavam os estudos. Teria, nas palavras dos meus pais, uma enxada
para a vida. Nesse ano, o 25 de Abril calhou num dia quente, Cascais encheu-se
de veraneantes e eu passei a tarde encostada ao muro da praia dos Pescadores, a
fingir que estudava as maçadoras lições de Direito. [...] Dali a dois anos, os meus pais conseguiram mudar-se,
por fim, do J. Pimenta, mas eu era já adulta. [...] e pouco depois vim para Lisboa.
Por essa altura, alguém escreveu em letras enormes, no prédio que ainda hoje
continua a desdentar o primeiro quarteirão da Avenida da República, junto ao
Saldanha, 25 de abril sempre, faxismo nunca mais. [...]
Crónica publicada na VISÃO n.º 1364 de 25 de abril
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