Ilustração de Susa Monteiro |
Recorte inicial da narrativa de Dulce Maria Cardoso, da «Visão», de 26-06
Posam com a rigidez das fotografias
de estúdio, mas estão na rua. Atrás deles, há uma tosca paliçada horizontal
onde despontam ervas entre as canas. Não é um casal amoroso com a sua filha
bebé. É outra coisa. O meu avô, além da compleição física atlética, tem feições
bonitas de ator de cinema. Lembra o Charlton Heston. De fato escuro, o seu
braço direito dobra-se em ângulo reto, tornando-se numa cadeira-trono para a
minha mãe. É o único do trio que não se apresenta hesitante, o único a quem nem
o sol nem o futuro apequenam o olhar. A mãozinha da minha mãe agarra
timidamente a da minha avó que, ao lado do marido e num plano que parece mais
recuado, apresenta-se vestida de camponesa, a camisa aos quadrados e a
saia preta a contrastarem com os sapatos de fivela. Os seus pés não estariam
habituados a tal finura e talvez seja essa a explicação para os ter em V, à
Charlot. É uma mulher feia, com monocelha e nariz adunco. Incrivelmente
pequena. Tem a mão esquerda pousada sobre a barriga, estaria grávida do meu tio
Manelinho, que viria a morrer aos oito meses de idade, depois de ter vomitado
um líquido verde. A minha mãe nunca se refere à morte do irmão sem falar do tal
líquido verde. Na fotografia, as cabeças dos três alinham-se numa reta
inclinada. A segunda guerra mundial vai a meio. [...]
Dulce Maria Cardoso, «Foto
#1: Para além daqui, só palavras me contam»