sexta-feira, outubro 20, 2017

«E pronto» - Lobo Antunes

Suza Monteiro (ilustração de)
Recortes da parte inicial:
Os olhos das pessoas nas camas dos hospitais, que gritam em silêncio o tempo todo, ensurdecendo-me. [...] Claro que nas alturas em que fui internado estou certo que os meus olhos não se calavam igualmente mesmo que tentasse sorrir. Sobretudo à noite, quando ficava sozinho, acompanhado pelo rectângulo mais claro da janela, a certeza que a noite lá fora me trazia apenas tristeza e sofrimento. Depois, de repente, acendiam as luzes, mexiam em mim, injectavam-me ou davam-me remédios a engolir, saíam outra vez e eu estupefacto que fossem capazes de andar, eu que nem sequer conseguia carregar na campainha, ao lado da almofada, que me diziam servir para chamar os enfermeiros, os quais se dirigiam quase sempre a mim na primeira pessoa do plural, cheios de diminutivos surpreendentes
– Vamos tomar este comprimidinho, vamos ver a nossa temperatura, vamos beber, excepcionalmente, um golinho de água.
Isto depois de me cegarem com a lâmpada do tecto, no interior da qual o insecto que eu era se agitava, movendo as pobres patas filiformes, sem entender, arrepiado, aflito. A claridade desaparecia, as solas diminuíam no corredor, eis a janela de novo, eis o silêncio, eis o que designam de noite. Tão escura a noite, tão indecifrável, tão plena de ameaças confusas, terríveis, contra as quais as minhas pobres mãos quietas nada podiam, os meus joelhos agudos nada podiam, as frágeis membranas das minhas pálpebras nada podiam. De vez em quando uma torre no corredor, um telefone longíssimo, vagos sons dispersos, o colchão tão duro na minha coluna, suponho que pernas, lá em baixo, que considerava minhas e não as sentia. Sentia, quando muito, um ténue zumbido à minha roda mas de quem, mas de quê, meio submerso em trevas fixas, opacas. [...]
[na edição de dia  12-10; em Arquivo, a partir de 19]

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