- enquanto a Biblioteca não é instalada, Manguel «adapta-se» a Lisboa, a nova Morada; na longa evocação publicada no «Expresso», vai das referências AUTOB da Infância à história de vida da Ama, alemã, a «sugestões Literárias» e ao ensaio sobre o Motivo do Confinamento
Recortes do Excerto Inicial:
Ao longo deste
confinamento em Lisboa (que certamente não será o último), {...] tenho passado muito tempo a pensar na mulher que me ensinou as primeiras
línguas que aprendi: inglês e alemão. Esta mulher não era a minha mãe: era uma
refugiada da Alemanha, contratada pelos meus pais como minha ama quando eu
tinha apenas meses de idade. Chamava-se Ellin Slonitz e tinha fugido da
Alemanha nazi com os seus pais, a sua irmã e o seu irmão, logo depois de a
velha sinagoga de Estugarda ter sido incendiada durante a Noite de Cristal. [...]
Nasci em Buenos Aires, mas, quando o meu pai foi nomeado embaixador em Israel, era eu ainda bebé, mudámo-nos para Telavive, para uma casa construída recentemente, [...]. Eu e a Ellin ficámos na cave: uma grande divisão cujas janelas eram quatro pequenos retângulos perto do teto, através dos quais eu via uma nesga de céu e a relva do jardim quadrado lá fora. As quatro palmeiras que havia no meio do relvado não se viam das minhas janelas, e eu experimentava sempre grande surpresa ao dar com elas, quando a Ellin me levava para brincar no jardim; parecia que estava à espera de que elas desaparecessem quando eu dormia. A redescoberta diária da presença das palmeiras reconfortava-me muito.
Nasci em Buenos Aires, mas, quando o meu pai foi nomeado embaixador em Israel, era eu ainda bebé, mudámo-nos para Telavive, para uma casa construída recentemente, [...]. Eu e a Ellin ficámos na cave: uma grande divisão cujas janelas eram quatro pequenos retângulos perto do teto, através dos quais eu via uma nesga de céu e a relva do jardim quadrado lá fora. As quatro palmeiras que havia no meio do relvado não se viam das minhas janelas, e eu experimentava sempre grande surpresa ao dar com elas, quando a Ellin me levava para brincar no jardim; parecia que estava à espera de que elas desaparecessem quando eu dormia. A redescoberta diária da presença das palmeiras reconfortava-me muito.
Uma vez (teria
eu quatro ou cinco anos), enquanto construía um cenário para os meus brinquedos
de chumbo e de latão (tinha uma coleção magnífica de animais da quinta e de
animais selvagens), disse à Ellin — como de costume, ela estava sentada à sua
mesa, a costurar na máquina elétrica — que o nosso quarto era demasiado grande
apenas para nós os dois. Na cave estavam as nossas camas, três mesas, várias
cadeiras de espaldar direito e desconfortáveis, uma poltrona estofada e um
colossal guarda-fatos de madeira, com portas espelhadas que duplicavam o
tamanho da divisão. ~
Ein Werdender wird immer dankbar sein”, citou a Ellin. “O homem feito é mau de contentar,/ Mas os que crescem sempre gratos serão.” E contou-me a história de quando ficou confinada durante meses com a sua família, em Estugarda, num apartamento demasiado pequeno, porque o pai dela considerava demasiado perigoso saírem à rua, sendo judeus; [...]
Ein Werdender wird immer dankbar sein”, citou a Ellin. “O homem feito é mau de contentar,/ Mas os que crescem sempre gratos serão.” E contou-me a história de quando ficou confinada durante meses com a sua família, em Estugarda, num apartamento demasiado pequeno, porque o pai dela considerava demasiado perigoso saírem à rua, sendo judeus; [...]
«Expresso»,
19 – 02 – 2021
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