domingo, março 23, 2025

« As raparigas podem ser electricistas?» OU «ainda estou aqui» (Isabela Figueiredo)

 

A máquina de escrever do meu pai

Imagem e texto da Página da Buchholz; DAQUI

Esta é a máquina de escrever na qual escrevi meus primeiros textos literários, trabalhos de faculdade, meu primeiro livro Conto É Como Quem Diz , artigos de jornal e trabalhos escolares como professora. Usei-a até o início dos anos 90, quando foi necessário migrar para um computador. Os textos que eu trazia do trabalho para terminar em casa eram em disquetes. Não valorizo ​​a lembrança da minha relação com esta máquina, a que me narra. Ela é importante porque pertenceu ao meu pai. Veio dele para mim. Por isso, a guardo, assim como guardo a máquina de costura da minha mãe, ainda com os carretéis onde ela os colocava e a linha que ela enfiava em furos específicos, numa jornada que não consigo reconstruir, por isso não posso desmontá-la. Mas agora o cenário muda: é noite, tenho seis anos, e este texto está sendo datilografado pelo meu pai. Estou sentada no chão assistindo. Ainda não sei escrever. Rabisco. Meu pai chegou do trabalho. Jantamos. Ele falou comigo e com a minha mãe, e agora está sentado à secretária para escrever este texto só com os indicadores, mas rápido. Está calor. Está de calções, camisola interior e descalço, como eu. A minha mãe repreende-nos por estarmos descalços. É falta de educação. Não é próprio de gente civilizada. Entretanto, passa a ferro a camisa que ele vai usar amanhã. Este texto, que no parágrafo anterior passei para as mãos do meu pai, é um projecto de instalação eléctrica geral de um edifício de 12 andares. Ele vai entregá-lo à Direcção-Geral das Infra-estruturas. Também pode ser um orçamento. É um orçamento, sim. Tantos escudos para cabos, tantos para fusíveis, tantos para tomadas, lâmpadas, fichas e interruptores. X para mão-de-obra. Total de não sei quantos mil escudos. «As raparigas podem ser electricistas?», pergunto. Podem, mas não é comum. Ele nunca viu, mas não é proibido. Quando meu pai não está em casa, brinco com sua máquina de escrever imaginando que sou adulta, casada e empregada em um escritório. Imaginando um futuro. Não sei se um dia olharei para ele sem saber o que fazer com ele. Que o guardarei, assim como a máquina de costura da minha mãe, por razões imateriais. É minha infância. É tempo perdido. Alguém depois o venderá para o ferro-velho, para dar lugar às infâncias que virão, tão puras e únicas quanto a minha. Sem saber disso. Isso mesmo. Mas depois. Quando eu não estiver mais aqui, e perder o controle sobre a matéria. Ficarei com a estimativa que meu pai está registrando, agora mesmo, enquanto escrevo, agora, e que só eu posso ver. Não sei quantos volts, não sei quantos amperes. Pai, o que é um volt? Pai, o que é um ampere? Guardarei essa estimativa imaterial até o fim do fim dos tempos, que está muito longe. Suspeito que nem exista. Mas agora ainda estou aqui.

ISABELA FIGUEIREDO

Máquina de escrever Rheinmetall, Lourenço Marques

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