Com verso de Caeiro, evocação de Infância, de J.
Monginho, no Alentejo [num «dossiê» do J.
L., intitulado «Memórias de outros verões»]
Recorte inicial:
“O dia começava ao pôr-do-sol, com os
chocalhos das ovelhas. Escuta, lá soam eles, dizia a tia Chica, cansada de
pressentir todos os sons da aldeia; feliz por, durante esses dias, os ouvir
através dos ouvidos curiosos da sobrinha.
A gaiata saltava da minúscula cadeira
encarnada e corria a assomar ao portão, nas traseiras da Casa. Se fosse hoje,
pensa ela, teria fotografado cada segundo dessa espera impaciente: a cauda da
estrada, lá em cima, iluminada como a de um cometa pachorrento, um cometa
alentejano, terreno, seguindo o aroma do pão; depois o novelo, tão distante que
parecia impossível desdobar-se até chegar, fio por fio, balido por balido, aos
olhos esbugalhados da gaiata. O canito à frente, treque-treque, língua de fora,
esbaforido. Atrás o pastor, quase tão alto como o depósito da água, que, ao
passar por nós, levava os dedos ao boné e ciciava boa tarde. Boa tarde, ti
Lucas.
Já não via desaparecer o rebanho na outra
ponta da estrada, a que dava para o Desvio, assim chamavam os aldenovenses ao
cruzamento que os levaria a Beja, a Espanha ou a Lisboa. Os ouvidos já
escutavam outra música, a que vinha da venda mesmo em frente, as vozes dos
homens amparadas umas às outras, um queixume plural, mudado em cante. Às vezes
falo comigo e digo triste sorte que é a minha. A mãe dava-lhe as moedas e
mandava-a à venda por uma laranjada. Lá dentro fazia escuro, mal se distinguiam
os homens por baixo dos chapéus, quanto mais as gargantas. De onde sairia o
cante? Ali se demorava, a ver se descobria, esfregando as mãos na garrafa
fresquinha. [...]
«Como um ruído de chocalhos para além da
curva da estrada», Julieta Monginho, JL –
Jornal de Letras, Artes e Ideias, n.º 1197, 17–08–2016, p. 8