[não será dos temas que mais interesse a V., mas o nível da AutoFicção justifica bem a Leitura - iniciada antes da Estadia de Mat., lentamente retomada desde sexta; atingida a p. 127]
Recorte:
Depois
de uma chuva intensa, o ar está luminoso e as multidões da hora de fecho das
lojas já desapareceram. Nesta segunda expedição, a Mabel agarra a luva com mais
força do que nunca. Está tensa. Parece mais pequena e sinto-a mais pesada, como
se fosse o medo a torná-la assim, como se lhe tivessem vertido estanho para
dentro, para os ossos ocos e longos. As marcas semelhantes a gotas da chuva na
sua fronte coberta de penas cerradas correm juntas formando linhas compridas à
volta de uma boca descaída. Debica pedacinhos de comida, mas principalmente
olha à sua volta, tensa e reservada. Segue bicicletas om os olhos. Curva-se,
pronta a saltar, quando as pessoas se aproximam de mais. As crianças
assustam-na. Fica inquieta com os cães. Com os cães grandes, quero eu dizer. Os
cães pequenos fascinam-na por outras razões.
Decorridos
dez minutos de apreensão, o açor decide que nenhuma destas coisas o vai comer
ou espancar até à morte. Sacode as penas e começa a comer. Automóveis e
autocarros passam a chocalhar, libertando fumos de escape e, quando a comida
desaparece, ele fica a contemplar o estranho mundo que o rodeia. E eu também.
Passei tanto tempo sozinha com ele, que vejo a cidade através dos seus olhos.
Ele observa uma mulher na relva, a atirar uma bola ao cão, e u fico a ver
também, tão perplexa como a ave com o que ela está a fazer. [...] O que salta à
vista de uma ave de presa na cidade não é o que salta à vista de um homem. As
coisas que vê não lhe parecem interessantes. São irrelevantes. Até que se ouve
um bater de asas. Erguemos ambos os olhos. É um pombo, um pombo-torquaz, a
descer para pousar numa limeira por cima de nós. O tempo abranda o seu ritmo. O
ar torna-se mais denso e ave transforma-se. É como se todos os seus sistemas
defensivos ficassem de súbito envolvidos. Miras vermelhas. Ela põe-se em bicos
de pés e estica o pescoço. Isto. Esta
trajetória de voo. Esta coisa, pensa ela. Isto é fascinante. Alguma parte do jovem cérebro do açor descobriu
qualquer coisa, e tudo gira em torno da morte.
Helen Macdonald, A de Açor, 2015, «Lua de Papel», pp. 120-121
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