[segunda,
pelas 11 e 20...; ao balcão do F., da «histórica» Dona I...; Recorte que
estava a ser lido, quando tocou o CEL, para a General Z, com a Dona M. D., de
Évora, ...]
A
minha visão turva-se. Transportamos as vidas que imaginamos tal como transportamos as vidas que temos e, por vezes, fazemos o cômputo de todas as vidas que perdemos. O almoço de verão recua. Não consigo recuperá-lo. Há nevoeiro que se infiltra, vindo do campo de râguebi que Prideaux percorria. Lufadas lentas e brancas. Há um silêncio na minha cabeça, mas vai-se
tornando mais sonoro. «Não sou uma espia», disse eu ao meu pai.
«Sou historiadora.» Mas ao observar toda a gente à volta da mesa, os seus
rostos fascinados com o meu açor, parece-me que já nem isso sou. Sou o Bobo, penso, entorpecida. Era uma investigadora, uma académica competente. Agora sou feita de retalhos. Já não sou a Helen. Sou a mulher-açor. A ave estraçalha a
perna do coelho. Vespas descrevem círculos à volta dela, semelhantes a
electrões. Pousam-lhe nos pés, no nariz, à procura dos restos de carne de
coelho que vão levar para o seu ninho de papel em qualquer sótão de Cambridge das
imediações. Mabel enxota-as com o bico e observa os seus abdómenes às listras
amarelas e pretas a girarem no ar antes de se endireitarem e de voarem de novo
direitas a ela. Este almoço de verão tem um ar profundamente irreal. Sombras
de damasco e prata, uma fotogravura
num álbum, qualquer coisa de Agatha Christie, de Evelyn Waugh, vinda de outra
época. Mas as vespas são reais. Elas
estão aqui, pertencem ao presente. O
mesmo se pode dizer do açor e do sol no centro deles. E eu? Não sei. Sinto-me oca
e desprotegida, um ninho de
vespas etéreo, vazio, uma coisa
feita de papel
machê depois de a a geada ter acabado
com toda a vida no seu interior.
[itálico
no texto; negrito acrescentado]
Helen Macdonald, A de Açor, 2015, «Lua de Papel», pp. 152-153
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