[leitura concluída ontem, na ESP. do R. ; dois outros recortes – AQUI e ALI]
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Ontem enquanto atravessava o peristilo a caminho do pavilhão
B vi um gato preto sobre o murete que suporta o gradeamento. Era grande e
longilíneo e passeava com a elegância
indiferente dos seres que se sabem muito belos. Esticava cada movimento como
que a exibir-se numa coreografia vaidosa. Eu tinha acabado de sair da sala dos
professores onde o barulho era tanto que repetia de mim para mim um dia fujo,
um dia fujo. Embora o tenha aprendido a disfarçar o meu desespero deve
continuar tão visível que há sempre uma alma condoída que me passa o braço
pelos ombros e diz tu assim não te aguentas, mulher. Depois saí e vi o gato em
cima do murete. Foi a única coisa bonita que vi ontem e é por não saber
desenhar que o escrevo aqui, gato num muro com mulher a vê-lo. O que me vale é
o que escrevo e só por isso consigo sobreviver: hoje uma pessoa começou uma
conversa comigo e subiam-lhe os gestos e que grandes eram mas de súbito percebi
que embora continuasse gesticulante tinha ficado insonora. Entre nós passava um
gato preto com a sua vaidade longilínea e um piscar cúmplice nos olhos de
veludo.
Ivone Mendes da Silva, Dano e virtude, Língua Morta, 2017 (Julho), p. 132
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