segunda-feira, agosto 21, 2017

«gato num muro com mulher a vê-lo» - Ivone M. da S.

[leitura concluída ontem, na ESP. do R. ;  dois outros recortes – AQUI e ALI]

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Ontem enquanto atravessava o peristilo a caminho do pavilhão B vi um gato preto sobre o murete que suporta o gradeamento. Era grande e longilíneo  e passeava com a elegância indiferente dos seres que se sabem muito belos. Esticava cada movimento como que a exibir-se numa coreografia vaidosa. Eu tinha acabado de sair da sala dos professores onde o barulho era tanto que repetia de mim para mim um dia fujo, um dia fujo. Embora o tenha aprendido a disfarçar o meu desespero deve continuar tão visível que há sempre uma alma condoída que me passa o braço pelos ombros e diz tu assim não te aguentas, mulher. Depois saí e vi o gato em cima do murete. Foi a única coisa bonita que vi ontem e é por não saber desenhar que o escrevo aqui, gato num muro com mulher a vê-lo. O que me vale é o que escrevo e só por isso consigo sobreviver: hoje uma pessoa começou uma conversa comigo e subiam-lhe os gestos e que grandes eram mas de súbito percebi que embora continuasse gesticulante tinha ficado insonora. Entre nós passava um gato preto com a sua vaidade longilínea e um piscar cúmplice nos olhos de veludo.


Ivone Mendes da Silva, Dano e virtude, Língua Morta, 2017 (Julho), p. 132

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