sexta-feira, maio 16, 2025

A Menina que não gostava da «cauda do Y» ; Audre Lorde

[atingida a página 281 - de 426]

RECORTE (s) 

[..]   Sentada à mesa da cozinha com a minha mãe, traçava as letras e identificava-as pelo nome. Ela não tardou a ensinar-me a dizer o alfabeto para a frente e para trás, como se fazia na ilha de Granada.  Apesar de só ter estudado até ao sétimo ano, durante o seu último ano na escola de Mr. Taylor em Grenville, tinham-na encarregado de ensinar as primeiras letras às crianças da primeira classe. Contou-me histórias sobre a severidade deste professor enquanto me ensinava a escrever o meu nome em maiúsculas.
    Como não gostava de ver a cauda do Y, em Audrey, pendurada abaixo da linha, esquecia-me sempre de a pôr, o que irritava a minha mãe. Aos quatro anos, eu adorava a regularidade de AUDRELORDE, mas lembrava-me de acrescentar o Y porque a minha mãe gostava e porque, como ela costumava sublinhar, tinha de ser assim porque era assim. Não era permitido qualquer desvio em relação ao que considerava correcto. [...]

 Audre LordeZami: assim reescrevo o meu Nome Uma biomitografia, pp. 42 - 43

segunda-feira, maio 12, 2025

«Quero Ler»; Audre Lorde

[atingida a página 248 - de 426]

RECORTE (s) 

[..]   Não ousei olhar para a minha mãe, com receio de que ela dissesse que não, por eu ser demasiado desobediente para histórias. Ainda perplexa com esta reviravolta súbita, subi para o banco que Mrs. Baker tinha puxado para mim, e dei-lhe toda a minha atenção. Era uma nova experiência, e sentia uma curiosidade insaciável.
    Mrs. Baker leu Madeline e Horton Hatches the Egg - histórias em verso, com ilustrações enormes e  lindíssimas, que vi graças aos meus óculos novos, presos à minha cabeça rebelde por uma fita preta elástica que ia de orelha a orelha. Também leu outro livro de histórias, sobre um urso chamado Herbert que devorou uma família inteira, uma pessoa de cada vez, começando pelos pais. No fim desta história, tinha-me conquistado para a leitura durante o resto da vida.
     Tirei os livros das mãos de Mrs. Baker quando ela acabou de ler e tracei as letras pretas grandes com o dedo, vendo outra vez as bonitas cores vivas das ilustrações. Nesse momento, decidi que tinha de aprender a fazer aquilo sozinha. [...] Declarei, muito alto, para quem quisesse ouvir: «Quero ler!»

 Audre Lorde, Zami: assim reescrevo o meu Nome - Uma biomitografia, pp. 40 - 41

quinta-feira, abril 17, 2025

«uma trintona possuída» [De Paolis]

[lidas as últimas trinta páginas do livro de F. de Paolis, interrompido lá por NOV-DEZ, de 24; após a narrativa da Morte da Mãe, um último, curto capítulo, de Evocação de outro  Evento de  quando a voz autoficcional andaria pelos cinco anos; 

RECORTE daí:
     [...] Voltámos à estrada e enfiou-se numa ruazinha, o parque Villa Ada estava muito perto. Abrandou para dar tempo a uma senhora de atravessar a passadeira: era de idade, trazia um velho cocker na trela e no braço tinha pendurada uma grande mala com asas de osso. Uma motorizada ultrapassou-nos pela direita, conduzida por um rapaz novo e esbelto, firme no selim como um guerreiro; com uma manobra marcial cercou a senhora e, num sopro, roubou-lhe a mala. A idosa soltou um grito [...] e a minha mãe engatou a primeira, sussurrando por entre os dentes:
    - Olha-me este pedaço de filho da puta!
    O ladrão tinha fugido a toda a brida, em voo rasante pela rua a descer, e a minha intrépida mãe decidiu que não podia deixar que escapasse impune.
   - Segura-te bem, meu amor|
   Agarrei-me à pega do passageiro de trás e Petulia agachou-se no chão do carro, parecia ter percebido o aviso. O ladrão furava o ar como uma seta, a palma da  mão da minha mãe batia sem parar na buzina do Mini 90. O bairro Trieste ficou suspenso e imóvel ao assistir à cena de uma trintona possuída, uma menina electrizada, um cão aterrorizado, que mordiam os calcanhares a um ladrão em fuga.   [..]

Federica de Paolis (1971; -), Do lado da mãe (2024), do capítulo final, «RUA NEMORENSE, n.º 33, 1976» [...], pp. 228, 229

[OUTRO]; [OUTRO]

domingo, março 30, 2025

Viga (Vigarista); Rubens Paiva

      Morávamos numa casa de dois andares, na esquina da Rua Delfim Moreira com a Almirante Pereira Guimarães, em frente à praia. Na época, uma transversal tranquila, com casas de classe média e sobrados, onde crianças brincavam e jogavam bola na rua. Num dia em que eu jogava com os novos amigos, minha mãe me viu e gritou da janela:
    - Seu vigarista, venha terminar o dever!
    Riram muito da palavra «vigarista». Acho que a maioria não sabia o significado. Nem eu. Pelo tom, sacamos que era algo que se diz a alguém que quebra uma promessa e deixa os outros irritados. Eles ficaram repetindo,  «Vigarista!», «Vigarista, Vigarista!». O apelido pegou. Além disso ela era sofisticada. Enquanto a maioria tinha apelidos simples, Teco, Neco, Caco, o meu vinha de uma palavra sofisticada, que enrolava na boca. Era a cara da minha mãe inspirar um apelido impronunciável. Com o tempo virou Viga.

Marcelo Rubens Paiva, Ainda estou aqui, p. 101

domingo, março 23, 2025

« As raparigas podem ser electricistas?» OU «ainda estou aqui» (Isabela Figueiredo)

 

A máquina de escrever do meu pai

Imagem e texto da Página da Buchholz; DAQUI

Esta é a máquina de escrever na qual escrevi meus primeiros textos literários, trabalhos de faculdade, meu primeiro livro Conto É Como Quem Diz , artigos de jornal e trabalhos escolares como professora. Usei-a até o início dos anos 90, quando foi necessário migrar para um computador. Os textos que eu trazia do trabalho para terminar em casa eram em disquetes. Não valorizo ​​a lembrança da minha relação com esta máquina, a que me narra. Ela é importante porque pertenceu ao meu pai. Veio dele para mim. Por isso, a guardo, assim como guardo a máquina de costura da minha mãe, ainda com os carretéis onde ela os colocava e a linha que ela enfiava em furos específicos, numa jornada que não consigo reconstruir, por isso não posso desmontá-la. Mas agora o cenário muda: é noite, tenho seis anos, e este texto está sendo datilografado pelo meu pai. Estou sentada no chão assistindo. Ainda não sei escrever. Rabisco. Meu pai chegou do trabalho. Jantamos. Ele falou comigo e com a minha mãe, e agora está sentado à secretária para escrever este texto só com os indicadores, mas rápido. Está calor. Está de calções, camisola interior e descalço, como eu. A minha mãe repreende-nos por estarmos descalços. É falta de educação. Não é próprio de gente civilizada. Entretanto, passa a ferro a camisa que ele vai usar amanhã. Este texto, que no parágrafo anterior passei para as mãos do meu pai, é um projecto de instalação eléctrica geral de um edifício de 12 andares. Ele vai entregá-lo à Direcção-Geral das Infra-estruturas. Também pode ser um orçamento. É um orçamento, sim. Tantos escudos para cabos, tantos para fusíveis, tantos para tomadas, lâmpadas, fichas e interruptores. X para mão-de-obra. Total de não sei quantos mil escudos. «As raparigas podem ser electricistas?», pergunto. Podem, mas não é comum. Ele nunca viu, mas não é proibido. Quando meu pai não está em casa, brinco com sua máquina de escrever imaginando que sou adulta, casada e empregada em um escritório. Imaginando um futuro. Não sei se um dia olharei para ele sem saber o que fazer com ele. Que o guardarei, assim como a máquina de costura da minha mãe, por razões imateriais. É minha infância. É tempo perdido. Alguém depois o venderá para o ferro-velho, para dar lugar às infâncias que virão, tão puras e únicas quanto a minha. Sem saber disso. Isso mesmo. Mas depois. Quando eu não estiver mais aqui, e perder o controle sobre a matéria. Ficarei com a estimativa que meu pai está registrando, agora mesmo, enquanto escrevo, agora, e que só eu posso ver. Não sei quantos volts, não sei quantos amperes. Pai, o que é um volt? Pai, o que é um ampere? Guardarei essa estimativa imaterial até o fim do fim dos tempos, que está muito longe. Suspeito que nem exista. Mas agora ainda estou aqui.

ISABELA FIGUEIREDO

Máquina de escrever Rheinmetall, Lourenço Marques

sábado, fevereiro 15, 2025

32... E «a próxima será na Margem Sul»

- cerca de 32 anos depois, por iniciativa de E. F. e H. T. V.,  cerca de 12 à Mesa - tudo facilitado pelo «Grupo no WPP.s...» - ; só R. levou os livros de L. F. P., logo, obteve as naturais Dedicatórias (como I. F. previamente comunicara a ausência, não levou os desta...) ; com maioria da «margem Sul», inevitavelmente: «a próxima será na Margem Sul...»

quinta-feira, fevereiro 13, 2025

«X Æ A-XII» = NOME ? = «a Criança é quem mais ordena?»

Fotografar a Criança na Sala do Império é uma Tradição (Kennedy, Obama...); à esquina da Mesa, com o «Dedo a Limpar a Sala», passa a ser a mais...; Kevin Lamarque / REUTERS; do «Público», de hoje


sábado, fevereiro 08, 2025

Maria Teresa Horta

 «Autobiografia», 2005, da Série publicada nas últimas páginas do «JL» - recolocada

[a Infância e a avó Camila, sempre...             ]

EXCERTO:

[...] «Vá Teresinha, que chegamos atrasadas» apressava-me, baixinha e delgada, olhar de violeta aceso, ao empurrar com os dedos afuselados, parecendo feitos de papel de seda, o portão de ferro forjado da Casa-Jardim, onde se reunia com fascinantes mulheres no início de algumas tardes. E apesar de curiosa e atenta, de imediato me resguardava na sua anca a defender-me, cara escondida no seu fato de seda com cheiro a alfazema.
     Mas logo elas me disputavam, pegando-me por baixo dos braços, a sentarem-me nos colos macios e perfumados ou nos joelhos luzidios das meias de seda, entoando com riso alto nas vozes ora estridentes ora suaves, «Ó menina, ó menina dos olhos azuis!» E eu, envergonhada, de imediato os fechava, sentindo-me um pouco tonta e perdida, mas sem susto; enquanto elas continuavam a passar-me de umas para as outras, até que por fim a minha avó me chamava para si, indagando: «Não falas à Maria?» E quando, anos mais tarde, a Maria Lamas me afirmou «Andei consigo ao colo», de imediato me lembrei do seu então jovem olhar entornado de mel, e do leve cheiro a pelica das luvas tiradas com vagares de cuidado, para me dar os rebuçados guardados para mim nos seus bolsos. [...]