terça-feira, setembro 29, 2020

«Avant et après», Gauguin

 Objeto híbrido ou «miscelânico», de 1903, de «Memórias, Diário, Auto-retrato, Manifesto e Testamento...»; a instituição que o recebeu, em troca de «impostos devidos», irá disponibilizá-lo ao Universo, digitalizado; INFO no «Público de ontem

sábado, setembro 12, 2020

«Em setembro ardem os montes e secam as fontes», Dulce M. Cardoso

 - «Setembro, setembro, setembro», na «Visão» de anteontem, 10, na série «ABG NÃO AUTORIZAD

Ilustração: Susa Monteiro

Recortes: 
      «Em adolescente o mês de Setembro desgostava-me. [...] 
      As férias grandes prolongavam-se então, até meados de outubro. As primeiras semanas sem aulas transbordavam de coisas boas, ir à praia com amigos, dar saltos do pontão do Tamariz, apanhar o comboio para espreitar Lisboa à revelia do revisor e dos pais, pedir gelados ao sr. Santini que regressava de Itália a cada primavera, subir e descer a Rua Direita deliciada com as excêntricas farpelas dos estrangeiros, apanhar boleias na Marginal, moer tardes no Tchipepa, cravar cigarros a desconhecidos, ver televisão até embater na mira técnica, chegava tão estafadamente feliz à cama que se tornava indesmentível as férias serem a criação mais conseguida de deus. Só que tudo cansa, até o prazer. Lá para o meio de agosto, o verão começava a gastar-se e eu aborrecia-me, o raio da areia pegava-se aos chinelos e às roupas, a água do mar parecia mais fria, Está cá um briol, gritava a Luísa, tão jovem no fato de banho comprado na Migacho. Tenho saudades da Luísa, que morreu há dois anos numa das enfermarias do IPO. Eu continuava a atirar-me, já sem o mesmo entusiasmo, do pontão do Tamariz, sobrava apenas meia dúzia de gatos-pingados na praia e a Teresa deixava-se ficar ao sol na toalha, estranhando a minha inábil insistência, Nunca vais conseguir saltar como os rapazes, o peso do peito escangalha-nos os mergulhos. Nessa altura, eu era quase só o meu corpo, e o meu corpo era tão eterno como o vaivém das estações, nessa altura, a morte, a minha e a dos que eu amava, não passava de uma peça mal desenhada que eu nem tentava encaixar no parco entendimento da vida. Tenho saudades da Teresa, que morreu muitos anos antes da Luísa, com as veias cheias de heroína. [...]

Em setembro ardem os montes e secam as fontes, dizia – dirá ainda – a minha mãe, o seu discurso minado por provérbios [...]