quinta-feira, fevereiro 25, 2021

Manguel: o Menino, a Cave e a Ama

 - enquanto a Biblioteca não é instalada, Manguel «adapta-se» a Lisboa, a nova Morada; na longa evocação publicada no «Expresso», vai das referências AUTOB da Infância à história de vida da Ama, alemã, a «sugestões Literárias» e ao ensaio sobre o Motivo do Confinamento

Recortes do Excerto Inicial:

Ao longo deste confinamento em Lisboa (que certamente não será o último), {...] tenho passado muito tempo a pensar na mulher que me ensinou as primeiras línguas que aprendi: inglês e alemão. Esta mulher não era a minha mãe: era uma refugiada da Alemanha, contratada pelos meus pais como minha ama quando eu tinha apenas meses de idade. Chamava-se Ellin Slonitz e tinha fugido da Alemanha nazi com os seus pais, a sua irmã e o seu irmão, logo depois de a velha sinagoga de Estugarda ter sido incendiada durante a Noite de Cristal. [...]
        Nasci em Buenos Aires, mas, quando o meu pai foi nomeado embaixador em Israel, era eu ainda bebé, mudámo-nos para Telavive, para uma casa construída recentemente, [...]. Eu e a Ellin ficámos na cave: uma grande divisão cujas janelas eram quatro pequenos retângulos perto do teto, através dos quais eu via uma nesga de céu e a relva do jardim quadrado lá fora. As quatro palmeiras que havia no meio do relvado não se viam das minhas janelas, e eu experimentava sempre grande surpresa ao dar com elas, quando a Ellin me levava para brincar no jardim; parecia que estava à espera de que elas desaparecessem quando eu dormia. A redescoberta diária da presença das palmeiras reconfortava-me muito.
Uma vez (teria eu quatro ou cinco anos), enquanto construía um cenário para os meus brinquedos de chumbo e de latão (tinha uma coleção magnífica de animais da quinta e de animais selvagens), disse à Ellin — como de costume, ela estava sentada à sua mesa, a costurar na máquina elétrica — que o nosso quarto era demasiado grande apenas para nós os dois. Na cave estavam as nossas camas, três mesas, várias cadeiras de espaldar direito e desconfortáveis, uma poltrona estofada e um colossal guarda-fatos de madeira, com portas espelhadas que duplicavam o tamanho da divisão. ~
     Ein Werdender wird immer dankbar sein”, citou a Ellin. “O homem feito é mau de contentar,/ Mas os que crescem sempre gratos serão.” E contou-me a história de quando ficou confinada durante meses com a sua família, em Estugarda, num apartamento demasiado pequeno, porque o pai dela considerava demasiado perigoso saírem à rua, sendo judeus; [...]

«Expresso», 19 – 02 – 2021


Sem comentários:

Enviar um comentário

Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.