segunda-feira, outubro 02, 2023

«Era preciso viver, apesar de tudo»

     [Outro Recorte da Leitura das semanas de 18 a 30 de SET.]

    «Até meados dos anos cinquenta, nos jantares de comunhão, nos festejos de Natal, a epopeia daquela época será recitada em várias vozes, repetida indefinidamente sempre com os temas do medo, da fome e do frio durante o inverno de 1942. Era preciso viver, apesar de tudo. A cada semana, o meu pai trazia de um entreposto, a trinta quilómetros de L..., num reboque atrelado à sua bicicleta, as mercadorias que os grossistas já não entregavam. Sob os bombardeamentos incessantes de 1944, naquela parte da Normandia, ele continuou a abastecer-se, mendigando suplementos para os velhos, famílias numerosas e todos os que estavam sob a acção do mercado negro. [...]
    Ao domingo encerravam o comércio, passeavam pelos bosques e faziam piqueniques com pudim sem ovos. Ele levava-me às cavalitas, cantando e assobiando. Durante os alertas, escondíamo-nos debaixo do bilhar do café, com a cadela. Convictos de que «era o destino». Por ocasião da Libertação, ele ensinou-me a cantar A Marselhesa, acrescentando no final «tas de cochons» para rimar com «sillon»- Assim como as pessoas em volta, estava muito contente. Quando ouvíamos um avião, levava-me à rua pela mão e mandava-me olhar para o céu, o pássaro: a guerra tinha terminado.»
  
 Annie Ernaux,  Um lugar ao sol seguido de Uma mulher, 2022, p. 36 - 37

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