sexta-feira, junho 26, 2020

Retrato (leitura de)


Ilustração de Susa Monteiro
Recorte inicial da narrativa de Dulce Maria Cardoso, da «Visão», de 26-06

Posam com a rigidez das fotografias de estúdio, mas estão na rua. Atrás deles, há uma tosca paliçada horizontal onde despontam ervas entre as canas. Não é um casal amoroso com a sua filha bebé. É outra coisa. O meu avô, além da compleição física atlética, tem feições bonitas de ator de cinema. Lembra o Charlton Heston. De fato escuro, o seu braço direito dobra-se em ângulo reto, tornando-se numa cadeira-trono para a minha mãe. É o único do trio que não se apresenta hesitante, o único a quem nem o sol nem o futuro apequenam o olhar. A mãozinha da minha mãe agarra timidamente a da minha avó que, ao lado do marido e num plano que parece mais recuado, apresenta-se vestida de camponesa, a camisa aos quadrados e a saia preta a contrastarem com os sapatos de fivela. Os seus pés não estariam habituados a tal finura e talvez seja essa a explicação para os ter em V, à Charlot. É uma mulher feia, com monocelha e nariz adunco. Incrivelmente pequena. Tem a mão esquerda pousada sobre a barriga, estaria grávida do meu tio Manelinho, que viria a morrer aos oito meses de idade, depois de ter vomitado um líquido verde. A minha mãe nunca se refere à morte do irmão sem falar do tal líquido verde. Na fotografia, as cabeças dos três alinham-se numa reta inclinada. A segunda guerra mundial vai a meio. [...]

Dulce Maria Cardoso, «Foto #1: Para além daqui, só palavras me contam»


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